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Entre tramas e cadeiras

  • nataliarib
  • 25 de jan. de 2021
  • 3 min de leitura

Três décadas de uma amizade construída em um local nada convencional. Foi numa calçada do Recife que dois forasteiros se encontraram na década de 1990. A cumplicidade entre esses pernambucanos vindos do interior é tamanha que transcende a amizade e se torna um caminho de reconhecimento, tal como entre pai e filho, que tem as suas histórias traçadas pelas ocorrências da vida.


Mesmo sem saber, eles estavam próximos desde o princípio. Talvez, coisa do destino – como alguns acreditam. Rosiel Gomes da Silva partiu de Limoeiro, na Zona da Mata, enquanto Manoel Marcolino dos Santos deixou o município de Lagoa do Carro. A distância entre eles era de apenas 20 quilômetros. A seu tempo, cada um rumou até o Recife, em busca de dias melhores.


A vida não parece ter atendido a todos os sonhos desses trabalhadores, contudo, não há dúvidas de que os presenteou com o companheirismo, mesmo que diante de um cenário improvável. Rosiel partiu para o Recife ainda adolescente, junto da mãe. Hoje com 49 anos e pai de três filhos – um de cada mulher, como lembra – ele encontra em Manoel a figura do próprio genitor. Foi ele quem o protegeu quando começava a compreender as nuances da vida adulta.


A pele do parceiro, tracejada pelo tempo, denuncia os 70 anos que tem. As mãos calejadas pelo plantio e a venda de frutas mostram que já deveria fazer uso do descanso da aposentadoria. Mas não. Ele se divide entre mamões, laranjas, limões e os afazeres do amigo. “Entre eu e ele é bem legal. Temos muita amizade”, fala a mim enquanto lixa a cabeceira de uma cama antiga.


Ocorre que na esquina da Rua Ernesto de Paula Santos com a Avenida Conselheiro Aguiar, em Boa Viagem, o comércio já se tornou familiar. Mesmo ofertando produtos diferentes eles dividem as tarefas. Acomodados em bancos improvisados vão tocando o trabalho e também as horas. Chegam cedo e saem quando o sol já se escondeu. Passam o tempo tramando cadeiras e olhando para a cidade. “As casas não existem mais. Agora é só prédio”, diz o mais jovem.


Silva tem uma empresa de empalhamento de cadeiras e restauração de móveis. Ele lixa, refaz a trama com palha indiana e enverniza a madeira. Aprendeu o ofício na rua, antes de completar 20 anos, com um conhecido de Limoeiro. Tentou ensinar aos irmãos, mas “os dois não pegaram o jeito”, conta a mim. Já para o fiel amigo foi tarefa fácil. “Nas horas vagas eu ajudo. Quando eu dou uma saída ele me ajuda e vende frutas para mim”, comenta o idoso.


A pandemia atingiu em cheio a parceria do dia a dia. O amanhecer deixou de ser sinônimo de expectativa pelo encontro entre os dois e pela troca de dilemas e alegrias. Devido à idade avançada, o que o inclui no grupo de risco para a Covid-19, Santos ficou quase três meses sem sair de casa. Silva voltou antes, mas não se sentia confortável na calçada. “Coloquei as coisas aqui e as pessoas me olhavam diferente, parecia que julgavam”, relata. Nesse período ele acabou retornando para a terra natal, onde continuou desempenhando seu ofício.


Na rua não há luxo. Não há ar-condicionado para lidar com o calor da terra em que existe um sol para cada um, como gostam de falar os pernambucanos. O espaço é de todos e, por isso, muitas vezes dividido com pessoas sem abrigo. Na reforma de móveis a céu aberto e na feira ao ar livre não há conforto algum. O que existe é cumplicidade e cuidado. A calçada e suas mazelas são as mesmas há 30 anos, mas a proteção já mudou de figura. Hoje ela é de filho para pai.


Em meados de setembro de 2020 os amigos voltaram a ocupar a calçada como local de trabalho


Texto e foto: Natalia Ribeiro

 
 
 

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